Diretor cearense premiado em Cannes comenta origens do filme e avalia futuro do cinema brasileiro no cenário internacional

Karim Ainouz, diretor de “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, avalia que longa traz olhar para a influência do machismo na sociedade contemporânea

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Em maio, o diretor cearense Karim Ainouz foi o primeiro brasileiro a receber o prêmio da principal mostra do Festival de Cannes, com o filme “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”. O longa conta a história das irmãs Guida e Eurídice, que sofrem uma separação na juventude por conta do forte machismo da época. Conversamos com Ainouz para conhecer mais sobre o trabalho vencedor e sobre o futuro do cinema brasileiro no exterior.

Qual foi a motivação ao dirigir o filme “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”?

“Apesar de ser uma adaptação de um romance superbonito da Martha Batalha, ele começou um pouco anterior a isso. Na verdade, eu queria ter feito um filme que falasse um pouco das mulheres da geração da minha mãe, que teve que enfrentar uma série de obstáculos, onde tudo era muito mais difícil do que hoje, mas que também, infelizmente, não é tão diferente. Eu fico muito à vontade de contar a história da minha mãe, e eu ganhei o livro de um amigo muito querido, e eu senti que tinha ali exatamente o material que eu queria falar: a experiência da mulher na década de 1950”.

Você conseguiu traçar um paralelo entre a década retratada no filme e a situação das mulheres atualmente?

“O filme tenta, de qualquer maneira, olhar para a influência do machismo na sociedade contemporânea e como tem algumas coisas que mudaram tão pouco de lá para cá. Ele [o longa] tem uma coisa importante, que é o pai separar as duas irmãs supostamente em prol da “honra da família”. A que preço se faz isso? A mesma história não aconteceria no Brasil hoje, mas acredito que histórias parecidas poderiam acontecer. Sempre que a gente faz um filme de época, é importante jogar luz no passado, mas ver o que ele fala sobre o agora. Eu acho que está havendo um negócio muito sério, que é a derrocada de uma sociedade patriarcal e marcada pelo machismo, e um certo desespero para que isso não aconteça”.

Você se sentiu desafiado a trazer um longa com temática mais social e diferente do que a produção nacional tem oferecido?

“O desafio desse filme para mim é o de falar de um tema tão relevante para esse tempo, mas de uma maneira que seja não só popular, mas acessível para um grande público. A melhor maneira para chegar nesse público é não só através da cabeça, mas também do coração. Esse filme utiliza de códigos do gênero cinematográfico, que é considerado de segunda classe, que é um melodrama e é absolutamente potente. Como usar de um gênero tão popular no Brasil para falar de um tema tão importante? O melodrama ressurge muito em momentos de crise política e social. É um gênero que fala de quem está à margem da sociedade, sofrendo discriminação, e nesse caso são as mulheres”.

Como o primeiro brasileiro a ganhar um prêmio na mostra Um Certo Olhar, em Cannes, você acredita que é o momento de abrir espaço para outros brasileiros chegarem lá?

“Eu acho que a gente ainda está um pouco sob efeito do prêmio, faz muito pouco tempo. Não esperava que ganhássemos, porque já era muito importante estar em Cannes. Eu espero que isso signifique alguma coisa. Parece que o prêmio não é só nosso, mas é do cinema brasileiro. De fato, quero que estimule a nova geração a sonhar com essa possibilidade e é o coroamento de anos de uma indústria que precisou se levantar do zero, e que foi se construindo. É um prêmio que fala que o que temos feito, nos últimos anos, tem dado muito certo. É quase como se tivéssemos ganhado a Copa do Mundo, mas a seleção não foi formada de um dia para o outro. Ela está sendo treinada há muitos anos. É um processo que tem que ser celebrado”.

Cinema brasileiro

Com “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, Karim Ainouz retomou uma prática comum entre grandes clássicos do cinema nacional. A adaptação de obras literárias para as telas de cinema ocorreu em diferentes ocasiões, como em “Vidas Secas” (1963), de Graciliano Ramos, “A Hora da Estrela” (1985), de Clarice Lispector, e “O Pagador de Promessas” (1962), de Dias Gomes.

A especialista em cinema brasileiro da Universidade de Brasília (UnB), Rose May Carneiro, explica que a trajetória cinematográfica no país sempre esteve ligada ao jornalismo, a questões sociais e tensões emocionais. Para ela, as produções brasileiras estão diretamente relacionadas ao aprendizado e a treinar o olhar para a própria cultura.

“Quando a gente fala de cinema, não estamos falando só de cinema. A gente fala de música, de literatura, dança, artes plásticas. O nosso cinema absorve várias vertentes culturais e transforma, a partir dessa amalgama, em histórias edificantes – onde cada vez mais as pessoas se veem. Há um espelhamento muito grande em relação aos nossos filmes”, apontou a professora.

Além de pesquisadora da área, Carneiro também é amante do cinema brasileiro. Ela diz que para ela, “o pior filme brasileiro é melhor que o melhor filme norte-americano”, em resposta aos grandes sucessos hollywoodianos.

Cinéfilo e crítico de filmes no blog loucosporfilmes.net, João Rafael, 33, desde criança sempre se interessou por cinema. Como morava em uma cidade do interior, só conseguia consumir os produtos que alugava na locadora. Hoje, morando em Brasília, João acompanha todos os lançamentos, principalmente os brasileiros.

Mas não foi sempre assim. Para ele, “o brasileiro desconhece o próprio cinema”. João Rafael exemplifica com o próprio exemplo. “Eu achava que o cinema nacional praticamente não existia ou era restrito a pouquíssimas coisas. Passei a conhecer o cinema nacional quando comecei a procurá-lo”, contou.

Papel feminino

O protagonismo feminino no longa premiado em Cannes mostra o desejo do diretor de expandir a participação da mulher no cinema. Não só em frente às câmeras, mas também como cinegrafistas, produtoras e diretoras dos longas. A jornalista Luísa Pécora, 32 anos, é criadora do site Mulher no Cinema, voltado para a divulgação do trabalho delas no universo cinematográfico.

Para Pécora, desde 2015, essa pauta se ampliou no Brasil e passou a ser mais discutida, até mesmo por conta da entrada de Débora Ivanov como diretora da Agência Nacional do Cinema (Ancine).

A jornalista acredita que é necessário ter mulheres como protagonistas dos filmes nacionais, independentemente do papel que exercem. Para ela, “não tem um jeito certo de abordar o feminismo e o direito da mulher”. "A única forma de combater o estereótipo é variedade. Você pode ter uma mulher que trabalha ou não, uma que quer ou não ser mãe. Você pode ter uma presidente que é corrupta e outra que é uma ótima líder. É preciso ter todo tipo de mulher”, completa.

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